………… .EDIÇÃO SUPLEMENTAR …………

Rev. Ang. de Ciênc. da Saúde. 2022 Agosto; 3 (Edição Supl.1): 1-4

e-ISSN: 2789 - 2832 / p-ISSN: 2789 - 2824  

Equipa Multidisciplinar de Profissionais de Saúde, Docentes e Investigadores Nacionais

 Direito versus bioética em tempos de pandemia. Que desafios?

Law versus bioethics in pandemic times. What challenges?

Raul Carlos Vasques Araújo * 1

 

1-    Universidade Agostinho Neto, Luanda , Angola.

* -  Autor correspondente. Email: raularaujo@gmail.com

DOI: https://doi.org/10.54283/RACSaude.v3iedsupl1.2022.p1-4

Recebido: Maio 2022 / Publicado: Agosto 2022  

 

Palavras-Chave: Bioética; Covid-19; Ética Hospitalar

Keywords: Bioethics; Covid-19; Ethics Institutional

 

Angola e o mundo vivem momentos difíceis e complexos desde que, no início do ano de 2020, a Organização Mundial da Saúde declarou a Covid-19 como uma pandemia. Desde essa altura, passamos a ter experiências de vida diferentes, com as empresas a fecharem, as pessoas a trabalharem em casa, na modalidade online e as famílias a ficarem confinadas em casa.

O choque da pandemia foi tão forte e as consequências tão mortais que foi necessário tomarem-se medidas extremas para se evitarem males maiores para as comunidades. Infelizmente, neste processo, os profissionais de  saúde, os principais combatentes desta nova guerra, assumiram os papeis de riscos e,  como verdadeiros guerreiros, não tiveram dificuldades em arriscar as suas vidas para salvarem a de milhares de pessoas.

A pandemia de Covid-19 veio levantar uma série de dúvidas jurídicas, fundamentalamente, em como se deve conduzir este processo a nível jurídico. As medidas obrigatórias de confinamento tomadas por muitos governos, com os apoios dos seus parlamentos, levantaram a seguinte questão: é ou não correcto que se tomem medidas de limitação das liberdades fundamentais para se assegurar um bem maior que é o da protecção da vida das comunidades?

A limitação da circulação de pessoas, a proibição de participação em actos públicos de toda a natureza, o encerramento de fábricas, restaurantes, bares, ginásios, teatros, etc, agravou ainda mais a situação económica de muitas empresas que se viram obrigadas a encerrar as suas portas, levando ao despedimento de milhares de trabalhadores. Várias foram as posições seguidas nos diversos países para tentarem conviver com esta nova realidade. Em alguns países os governos por meio dos seus  líderes, numa visão extremamente liberal, entenderam que não se deveria limitar os direitos fundamentais dos cidadãos e as consequências estão à vista. O Brasil e os Estados Unidos da América, com a anterior administração política, são um exemplo desta visão negativista. Por conta desta negligência milhares de pessoas perderam as suas vidas e ou tras ficaram infectadas, a lutarem  por suas vidas. A estes dois países podemos associar outros países africanos, europeus, asiáticos e outros tantos da América Latina.

Os dados oficiais da Organização Mundial da Saúde dão-nos muita informação estatística, não apenas sobre as perdas de vida no mundo, mas, também, sobre que tipo de medidas foram tomadas para fazer face a esta pandemia.

Aqui chegados, levantam-se as seguintes questões:

Pode ou não haver limitações  dos direitos, liberdades e garantias fundamentais em situações de emergência sanitária?


Qual  é  a posição do Estado em relação às pessoas que se recusam a vacinação?

A vacinação das crianças, deve ou não ser obrigatória?

O que fazer se neste processo de restrições não se cumprirem todas as regras e normas constitucionalmente definidas?      

Qual é a relação existente entre o Direito e a Bioética em tempos de pandemia?

Não existem dúvidas de que quaisquer limitações aos direitos, liberdades e garantias fundamentais apenas podem ser feitas nas condições definidas pela Constituição. O n.º 1 do artigo 56.º afirma que “O Estado reconhece como invioláveis os direitos e liberdades fundamentais consagrados na Constituição e cria as condições políticas, económicas, sociais, culturais, de paz e estabilidade que garantam a sua efectivação e protecção, nos termos da Constituição e da lei”.

O artigo 57.º da Lei Fundamental, que tem como epígrafe “ A Restrição de direitos, liberdades e garantias” estatui, no seu número 1, que “a lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário, proporcional e razoável numa sociedade livre e democrática, para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos”.

Continuando, o n.º 1 do artigo 58.º expressa que “o exercício dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos apenas pode ser limitado ou suspenso em casos de estado de guerra, de estado de sítio ou em estado de emergência, nos termos da Constituição e da lei”.

Mas, atenção, apenas a Assembleia Nacional tem competência, exclusiva, para legislar com reserva absoluta de competência legislativa, as matérias ligadas aos direitos, liberdades e garantias fundamentais dos cidadãos (alínea b) do artigo 164.º assim como legislar sobre restrições e limitações dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos (alínea c) do artigo 164.º da Constituição).

Assim sendo, desde logo se coloca uma questão constitucional: nos termos da Constituição (alíneas o) e p) do artigo 119.º compete ao Presidente da República, na sua qualidade de Chefe de Estado, “declarar o estado de sítio e o estado de emergência, ouvida a Assembleia Nacional”. Ora, esta audição do parlamento não confere ao Presidente da República poderes para restringir os direitos fundamentais, ao contrário do que se tem defendido e seguido na nossa vida política, uma vez que os poderes de reserva absoluta são intransmissíveis.

Constitucionalmente, nem mesmo com a decisão unânime do Plenário da Assembleia Nacional este órgão poderia delegar a outro órgão o poder de regular matérias da sua competência exclusiva. O mesmo acontece com as competências que são de reserva absoluta do Presidente da República (por exemplo, o de definir a orgânica e estabelecer a composição do Poder Executivo (alínea e) do artigo 120.º ou a competência dos Tribunais de administrar a justiça em nome do povo.

Este núcleo de competências, denominado de separação material de poderes, é um dos elementos essenciais de um Estado Democrático de Direito, um dos princípios estruturantes do Estado angolano.

A pandemia da Covid-19, como se pode constatar, para além das questões que levanta em relação às limitações dos direitos fundamentais, também levanta a discussão sobre conflitos entre direitos fundamentais, nomeadamente, o direito à locomoção e o direito à saúde.

4. Aqui chegados, novas interrogações se colocam : será que ao longo deste processo de pandemia se tem seguido as normas constitucionais no que respeita às restrições dos direitos, liberdades e garantias fundamentais? Se a resposta for negativa, por que razão nada se diz sobre esta matéria?

É a partir daqui que entramos para a compreensão de alguns conceitos novos como o de Biodireito, ética e bioética.

De acordo com os especialistas nesta matéria, o Biodireito é definido como sendo “o conjunto de regras jurídicas já positivadas e voltadas a impor- ou proibir- uma conduta médico-científica e que sujeitem seus infratores às sanções por elas previstas”.  Assim, o Biodireito é um novo ramo jurídico entendido como “o conjunto de leis positivas que visam estabelecer a obrigatoriedade de observância dos mandamentos bioéticos, e, ao mesmo tempo, é a discussão sobre a adequação, -sobre a necessidade de ampliação ou restrição- desta legislação” 1.

O Biodireito tem uma relação directa com os dois outros conceitos: a ética e a bioética, o primeiro entendido como  o “modelo  de conduta  humana, capaz de guiar o indivíduo, concomitantemente, ao bem pessoal e ao bem

 

público -no sentido de coletivo, da avaliação do que é bom para a sociedade” e a bioética como sendo “a ética da vida”1. Não entraremos na análise e discussão destes conceitos, mas servimo-nos deles para tentar compreender a nossa situação actual e, quem sabe, um pouco do que se passa no mundo.

A pandemia da Covid-19, como já nos referimos anteriormente, trouxe à discussão algumas questões jurídicas importantes, nomeadamente, a relação entre o Direito e a Bioética. E porquê? Porque se deve dar uma resposta jurídico-constitucional aos novos desafios surgidos em tempo de pandemia, como sejam:

a) Em situações graves, como a que estamos a viver neste momento com a pandemia da Covid-19, em que medida a defesa da saúde pública e das pessoas pode ser entendida como uma questão de segurança nacional e se devem tomar medidas de protecção e de defesa nacional que têm como consequência as limitações de direitos, liberdades e garantias fundamentais?

b) Quais os limites a estabelecer aos poderes políticos nestas situações?

c) Podemos dizer que a pandemia da Covid-19 nos colocou perante novos desafios éticos e bioéticos?

Vamos, de forma resumida, dar algumas respostas às perguntas formuladas.

Questão 1 – A experiência de um ano de “convívio” com esta pandemia mostrou que o seu controlo e combate passam pela tomada de medidas drásticas que obrigam ao confinamento das pessoas, ao encerramento de locais públicos, ao fecho de empresas, fábricas, etc... O que conduziu, por um lado, a graves problemas económicos e sociais e o índice elevado de desemprego e, por outro lado, a problemas de fórum psicológico.

Os países que não tomaram estas medidas viram e ainda sentem as consequências desta decisão: número crescente de pessoas infectadas e o aumento descontrolado da mortalidade. Exemplos mais graves: Brasil e EUA.

Estamos deste modo perante uma situação em que a defesa da saúde pública e das comunidades se sobrepõem aos interesses individuais.

Em síntese, as limitações de direitos, liberdades e garantias, assim como de outros direitos fundamentais, são a resposta jurídico-política para se conseguir controlar e combater a pandemia da Covid-19.

Questão 2 – A dúvida de fundo jurídico-constitucional que se coloca é a de se saber quais são os limites que os poderes políticos e, particularmente, o Executivo, devem ter.

Em alguns países, segundo a imprensa internacional, alguns Presidentes da República ter-se-ão aproveitado desta situação para reforçar o Poder Executivo em detrimento do Parlamento, encontrando, assim, a justificação necessária para fazer uma “deriva à direita” e pôr em causa o princípio do necessário equilíbrio de poderes num Estado Democrático de Direito.

Entendemos que o combate à pandemia é um problema nacional e que os vários poderes políticos e públicos devem estar engajados. O Poder Executivo deve actuar de forma célere, sempre que for necessário, mas dentro dos limites que a Constituição lhe impõe. Nada pode justificar que se ponha em causa o princípio de um Estado de Direito e o consequente princípio de separação e equilíbrio de poderes.

Em suma, a pandemia da Covid-19 não pode ser um pretexto para se alterar, materialmente, os fundamentos de um Estado Democrático de Direito. Para tal, o Parlamento deve assumir um papel activo no controlo das medidas que forem tomadas pelo poder executivo, incluindo o controlo das despesas públicas despendidas neste processo.

Questão 3 - A Bioética não trata, apenas, de problemas éticos ligados à saúde e prática médica, uma vez que, o seu objecto, se estende a aspectos ligados à saúde pública, questões populacionais, genética, cuidado com o meio ambiente (principalmente a saúde e bem-estar dos animais)2, bem como outros assuntos. Assim sendo, podemos dizer, sem medo de errar, que a pandemia da Covid-19 nos colocou perante uma situação complexa, tal como nos referimos ao longo da exposição.

Para concluir, deixamos a seguinte questão: A pandemia da Covid-19 trouxe-nos uma nova visão do Biodireito e da Bioética numa perspectiva jurídico-constitucional ?

O tempo dar-nos-á a resposta pertinente a esta dúvida.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1.    Chiarini Júnior EC. Portal “Âmbito Jurídico” [Internet]. 2019 [cited 2021]. Avaialable from: www.ambitojuridico.com.br

2.    Lumertz ESS, Machado GB. Bioética e Biodireito: origem, princípios e fundamentos. Revista do Ministério Público do Rio Grande do Sul. 2016;  81:107- 126.

3.    Araújo RCV, Nunes ER, Lopes M. Constituição da República de Angola Anotada. Tomo II. Luanda: Edição do autor. 2018.

4.    Lima ACF, Araújo FS, Sottili LA. Colisão de direitos fundamentais durante a pandemia causada pela Covid-19. Revista eletrônica da ESA/RO. 2020; 2 (2).

5.    Oliveira LPM, Vasconcelos PFM. Pandemia da Covid-19 e a restrição de direitos fundamentais: um exame constitucional sobre o conflito entre o direito de locomoção e o direito à saúde. 2021.

 

 

RACSAúde. Angolan Journal of Health Sciences. www.racsaude.com