.EDIÇÃO SUPLEMENTAR

Rev. Ang. de Ciênc. da Saúde. 2022 Jan – Jun; 3 (Edição Supl.1): 10-14

e-ISSN: 2789 - 2832 / p-ISSN: 2789 - 2824  

Equipa Multidisciplinar de Profissionais de Saúde, Docentes e Investigadores Nacionais

 

A Bioética global e os direitos humanos para o desenvolvimento sustentável

Global Bioethics and human rights for sustainable development

Alberto García Gómez * 1

1-      Cátedra UNESCO de Bioética e Direitos Humanos, Roma. Orcid: 0000-0001-9090-0966

* -  Autor correspondente. Email: agarcia@unescobiochair.org

DOIhttps://doi.org/10.54283/RACSaude.v3nedsupl1.2022.p25-29

Recebido: Maio 2022 / Publicado: Agosto 2022                   

 

RESUMO

Tomar decisões criticamente fundamentadas entre o que podemos fazer e o que devemos evitar, ou o que é melhor fazer quando surgem alguns dilemas, é crucial para o discernimento ético e político. A legitimidade das decisões humanas sobre as aplicações da ciência e da tecnologia para promover a vida, a saúde e o bem-estar dos povos é possível graças à cooperação internacional e à protecção do direito como instrumento de protecção e garantia do bem comum, da dignidade e bens fundamentais da pessoa, isto é, o que chamamos de direitos humanos. A Bioética Global propõe uma articulação adequada entre as questões bioéticas e os direitos humanos como paradigma ético universal que deve ser levado em consideração nas decisões, públicas e privadas, no campo das ciências da vida e da saúde. O desafio ético e político é saber como equilibrar o interesse legítimo da indústria por lucros e o desenvolvimento econômico com inovação científica e tecnológica prudente e para o bem das pessoas e comunidades. O reconhecimento mútuo está na base da relação que nos permite dar a cada um o que é seu e promover a convivência pacífica na nossa casa comum. Se realizada de acordo com os imperativos morais de solidariedade e justiça, atentando para a minimização das distâncias entre pobres e ricos e entre as regiões Norte e Sul Global, a ciência e a tecnologia contribuirão para o desenvolvimento humano de forma eficaz e eticamente sustentável.

Palavras-chave: Bioética; Direitos Humanos; Desenvolvimento Sustentável

 

ABSTRACT

Making critically informed decisions between what we can do and what we should avoid, or what is best to do when some dilemmas arise, is crucial for ethical and political discernment. The legitimacy of human decisions on the applications of science and technology to promote life, health and people's well-being is possible thanks to international cooperation and the protection of law as an instrument to protect and guarantee the common good, dignity and fundamental goods of the person, that is, what we call human rights. Global Bioethics proposes an appropriate articulation between bioethical issues and human rights as a universal ethical paradigm that should be taken into consideration in decisions, public and private, in the field of life and health sciences. The ethical and political challenge is how to balance the legitimate interest of industry for profits and economic development with prudent scientific and technological innovation for the good of people and communities. Mutual recognition is at the basis of the relationship that allows us to give each his due and to promote peaceful coexistence in our common home. If carried out in accordance with the moral imperatives of solidarity and justice, paying attention to minimizing the gaps between the poor and the rich and between the Global North and South, science and technology will contribute to human development in an effective and ethically sustainable manner.

Keywords: Bioethics; Human Rights; Sustainable Development

 

      Um dos maiores desafios que a Bioética enfrenta actualmente reside nos seus fundamentos constituintes. Trata-se, de facto, da possibilidade e implementação de uma gramática comum para comunicar com uma linguagem universal, mas também da missão de marcar efectivamente a centralidade do valor humano e pessoal nos desenvolvimentos biomédicos e tecnológicos. A Bioética Global é uma perspectiva mais ampla da Bioética que permite uma interconexão entre a Bioética e outros campos do conhecimento, como a Ecologia, os Direitos Humanos e os Objetivos de Desenvolvimento Sustentáveis da ONU. Com o intuito de proporcionar uma abordagem universal da Bioética, é necessário um diálogo entre a Bioética e a declaração da UNESCO sobre Bioética e direitos humanos, como também entre a Bioética e os Objectivos de Desenvolvimento Sustentável das Organização das Nações Unidas (ONU).

Intui-se também uma correlação entre a Bioética e o “Laudato Si” do Papa Francisco. Para uma melhor compreensão deste paralelo entre ambas as partes, um termo universal como Bioética Global apresenta-se como essencial no estudo da Bioética. A origem do próprio termo “Bioética Global” representa a ideia de concordância e compreensão universal dentre as diversas visões adentro à Bioética: O Professor Van Rensselaer Potter (1911-2001), conhecido como o fundador da disciplina "Bioética", foi também aquele que expandiu o termo para "Bioética Global".

A Bioética Global na visão de Potter une dois significados da palavra "Global" (Potter, 1988): Em primeiro lugar, é um sistema de ética que tem alcance mundial, segundo, é unificado e abrangente"(Ten Have & Gordijn p. 8).

O objectivo de Potter era ampliar o termo Bioética para um significado mais profundo e unificador. Apesar dos diferentes aspectos da compreensão local da Bioética, ele sugere implicitamente uma unificação de todas as diversas visões mundiais da Bioética para um entendimento comum, a fim de obter um mundo melhor para todos os seres humanos. A Declaração da UNESCO sobre Bioética e Direitos Humanos (2005), o “Laudato Si” do Papa Francisco (2015) e os Objectivos de Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas (2015) possuem todos o mesmo intuito. Através da análise destas declarações, podemos observar a inter-relação que têm em comum: A necessidade de reivindicar um mundo ecológico e humanista.

Em suma, os principais actores da Bioética são o pesquisador, o médico, o sujeito de experimentação e o paciente. No entanto, não devemos negligenciar as outras instituições que estão inter-relacionadas com os actores acima mencionados. Este sector, cujo exercício está directamente relacionado com a Bioética e os seus actores, constitui-se pelo governo, hospital, laboratório, família, indústria/empresa. Por exemplo, a família incide sobre o sujeito um profundo impacto nas decisões em aderir ou recusar um procedimento médico. Analogamente, um governo que não faz esforços para apoiar a acção climática relativamente ao aquecimento da Terra, causa, portanto, situações críticas aos seus próprios cidadãos. Na medida em que desrespeita os Direitos Humanos e coloca seus cidadãos em risco. Expondo-os a situações vulneráveis, como inundações, destruição de floresta nativa, erosão e, consequentemente, a lugares inabitáveis. 

Nesta perspectiva, a Bioética não pode estar relacionada apenas com a intervenção clínica e médica. Esta deve, portanto, ser designada por um termo mais amplo que permita abranger todas as grandes questões colocadas pela sociedade, como o termo Bioética Global. Assim, a Bioética Global deve examinar o "nível biopolítico" do mundo. Biopolítica como uma compreensão mais profunda das implicações da ética em todas as sociedades. Nesta abordagem, a Bioética deve ser uma ferramenta necessária para refletir sobre as acções a serem tomadas pelos governos do mundo todo.

Portanto, a consolidação e a extensão super-estrutural do discernimento bioético requerem necessariamente a ligação inseparável com o Biodireito, a Biopolítica e os Direitos Humanos, preservando aquela gramática universal mencionada anteriormente, em um contexto globalizado e multi-variegado.

Quaisquer que sejam as origens históricas precisas da Bioética, actualmente, ela transformou-se em um fenômeno verdadeiramente Global. Tem significado em todo o mundo, porque as pessoas não são meramente europeias ou asiáticas, mas cidadãos do mundo e membros de uma comunidade moral Global. A Bioética é importante para todos, não porque seja importada ou imposta, mas porque fornece um quadro universal para interpretar e gerir as mudanças em curso, nas quais actualmente todos os países e culturas estão envolvidos. No entanto, a interpretação e aplicação deste quadro deve ser sempre informada pelas circunstâncias locais" (Ten Have & Gordijn p. 5). Embora o Principialismo seja majoritariamente reconhecido como o fundamento teórico da Bioética, é aqui compreendido como restritivo à interpretação Ocidental da Bioética e não se implica ao extenso alcance que a Bioética Global abrange.

Deve ser enfatizado, no entanto, que o principialismo possui intrinsecamente uma visão individualista da Bioética, ao contrário de uma visão solidária no que concerne às questões Bioéticas (por exemplo, Solidariedade e Ética Comunitária oriundas da Bioética africana). "[...] Manter esta ligação e as dificuldades intrínsecas da interpretação transcultural firmemente em mente promove a humildade e o tacto. Talvez, mais importante ainda, ajuda a construir solidariedade, cuja falta ceifa o respeito mútuo, e fomenta a defesa e a recriminação mútua que é expressamente possível quando alguém ousa julgar a ética ou as práticas habituais de outra pessoa" (Stalnaker, p. 15).

Deve-se evitar um relativismo contemporâneo relacionado às diferentes abordagens da diversidade cultural na Bioética Global. A gama de diversas compreensões locais ou regionais da Bioética, deve ser compreendida através do respeito por diferentes visões da Bioética, de forma a permitir uma resolução solidária sobre esta questão.       

Assim, nem o relativismo contemporâneo, nem o subjetivismo individualista cumprem satisfatoriamente o dever de promover o respeito universal pela justiça, como indicado no artigo 1º do texto constitucional da UNESCO.

No campo da Bioética, "...a importância da diversidade cultural e do pluralismo deve ser tida em devida consideração. Contudo, tais pronunciamentos não devem ser invocados para violar a dignidade humana, os direitos humanos e as liberdades fundamentais" (Declaração Universal da UNESCO sobre Bioética e Direitos Humanos, adotada por aclamação em 19 de outubro de 2005).

A Declaração da UNESCO (2005) é um documento vital para combater as desigualdades no mundo. Este documento tem e teve uma enorme aclamação em todo o mundo e possui um papel central na Bioética Global. O mesmo reivindica a dignidade, os direitos, a saúde e a educação de modo a prover uma vida adequada para todos e cada um dos seres humanos. Os Direitos Humanos são universais, intrínsecos, incondicionais e inalienáveis. Para além disso, também reivindicam autonomia, responsabilidade individual e consentimento informado dada à sua influência pelo Código de Nuremberg (1947). Defende também a protecção das pessoas vulneráveis e o respeito por todas as pessoas e às gerações futuras. Toda a declaração baseia-se na fundação de uma sociedade solidária, enquanto as principais preocupações estão relacionadas com o bem-estar da humanidade, bem como com a protecção da Terra.   

Assim, o movimento correcto é avançar em direcção à moralidade e aos direitos humanos desde o início; uma governança territorial e global, ética e antropológica, que baseia-se também no princípio da subsidiariedade (através do diálogo, da cooperação e da partilha de informações e de material de pesquisa), para evitar a radicalização de situações contrárias ao bem comum e ao próprio ser humano. Para agir sobre isso, é de grande valor, fazer uma vigilância ética em torno de questões ecológicas, como V. Potter , o próprio, propôs-se a fazer na visão da bioética como "Ponte para o futuro'' e "Ciência da sobrevivência".  A ansiedade de Potter não pode ser considerada superada ou diminuída, dado as condições e desigualdades do mundo empírico.

Outra declaração substantiva que deve ser considerada, que pretende proporcionar uma acção climática e uma vigilância em torno das questões ecológicas é a Laudato Sì do Papa Francisco. O Papa é uma figura crucial que representa uma parte significativa do globo e defende uma reflexão e acção ecológica em relação ao nosso planeta. Neste momento que estamos vivendo, uma preocupação ecológica torna-se uma das principais questões de todas as sociedades. O Papa refere-se a todos os problemas mencionados acima como a "Crise ecológica".

A palavra ecologia vem do grego, que significa estudo (logos) da casa (oikos) (cfr. Ramellini, 7-8). O Papa aproveita-se habilmente desta etimologia. O significado contemporâneo comum da palavra é principalmente científico. Refere-se ao estudo científico dos organismos que vivem em seu entorno. Porém, é precisamente esta perspectiva científica que está no centro das estruturas sócio-políticas contemporâneas que o Papa critica.

Assim, quando ele identifica seu argumento geral como um apelo a favor e em nome da nossa "casa comum", o Papa apropria-se da palavra e a atribui de valores humanos e teológicos. Pinta uma imagem profunda desta casa. Ele rejeita a visão meramente científica e/ou económica. Ele coloca o ser humano na natureza e o eleva a uma categoria ética especial na qual nós, como seres humanos, em muitos aspectos a espécie dominante, devemos agir responsavelmente para com a natureza e para connosco. Ao fazê-lo, dá uma grande profundidade metafísica e ética à palavra "ecologia" que falta à ciência.

Em nossa experiência pessoal, trabalhando sobre questões bioéticas em ambientes multiculturais como os das organizações internacionais, devemos reconhecer com gratidão que os princípios e valores, assim como a linguagem da doutrina social, têm sido os melhores veículos para comunicar o pensamento católico sobre estas questões Bioéticas, analisadas e apresentadas à luz dos direitos humanos e de seus deveres correlatos (Cfr. Tham, García Gómez, Miranda; Caamaño López, p. 97).

Portanto, os ensinamentos do Papa, relativos à Ecologia, estão para além da sua tradição teológica, pois chegam a todos os seres humanos e ao próprio mundo. Juntamente com esta questão que o mundo precisa de abordar, correlaciona à mesma, os objectivos de desenvolvimento sustentável da Organização das Nações Unidas. Os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável são necessários como directrizes para os governos sobre quais as principais questões cujos mesmos devem debruçar-se. Para solucionar a desigualdade de renda, a desigualdade de género, as mudanças climáticas e a fome, deve haver líderes que estejam dispostos a governar através da solidariedade e do altruísmo.

A noção de "governança '' é complementada com a de "sustentabilidade". Em particular, a segunda, é impulsionada pelos dezassete Objectivos de Desenvolvimento Sustentável propostos pelas Nações Unidas, sobre os quais foi solicitada uma adaptação progressiva: pelas políticas internas e externas de cada país; pela pesquisa e pelo mundo académico; pelo património cultural e, finalmente, pelos planos de investimento e de crescimento económico-industrial. Estes Objectivos são um espelho do apelo internacional à colaboração sinérgica mútua, com o objectivo de alargar o bem-estar, tornando-o justo entre as populações e vigilantes em relação aos direitos humanos. Na verdade, eles tentam delinear a base do projecto (em seu próprio contexto de interesse) na atenção ao ser humano, aos grupos vulneráveis e ao planeta. Um propósito bem enquadrado pelos chamados "Cinco P's": Paz (construir uma convivência pacífica e inclusiva), Pessoas (aumentar as medidas de combate à fome e à pobreza, mantendo firmes os valores da dignidade e da igualdade); Prosperidade (aspirar à prosperidade na salvaguarda dos recursos e com acessibilidade proporcional); Planeta (assegurar um clima e um ambiente favorável ao crescimento, sobrevivência e desenvolvimento para as gerações futuras); Parceria (intensificar a cooperação solidária entre as Nações).

Deve ser salientado que o terceiro Objectivo de Desenvolvimento Sustentável é a saúde e o bem-estar. Este é o primeiro objectivo que pode ser facilmente relacionado à Bioética. Além disso, este objectivo é essencial na medida em que quando este objectivo for alcançado, todos os outros tendem a ser alcançados conjuntamente. Como apresentamos antes, uma compreensão mais ampla da Bioética faz-se necessária, para que a Bioética Global, portanto, possua uma inter-correlação entre os dezassete objetivos propostos pela Organização das Nações Unidas. Isto pode ser exemplificado quanto à correlação entre os próprios objectivos da agenda, por exemplo, para proporcionar saúde e bem-estar, deve haver um saneamento adequado para todos os seres humanos.

No entanto, podemos observar explicitamente que as Nações Unidas moldaram esses objectivos possuindo a declaração da UNESCO sobre Bioética e Direitos Humanos (2005) como base e pré-requisito. Ou seja, refletindo sobre os direitos e deveres de cada cidadão estabelecidos pela UNESCO, a ONU forneceu um diagnóstico completo das principais questões em nossas sociedades.

Os Objectivos de Desenvolvimento Sustentável que estão intimamente associados à Bioética Global são: "Sem Pobreza", "Fome Zero", "Redução de Desigualdades", "Igualdade de Gênero", "Educação de Qualidade", "Água Limpa e Saneamento", " Energia Acessível e Limpa", "Paz", "Justiça", "Instituições Fortes" e "Ação Climática". Estes objectivos estão todos interligados aos direitos humanos ou às preocupações ecológicas, como já foi referido anteriormente.

Portanto, uma aliança entre a declaração da UNESCO sobre Bioética e direitos humanos, o “Laudato Si” e os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável pode ser utilizada para alcançar a finalidade onde haja uma sociedade pluralista, ecológica, digna e solidária.

Dessarte, a Bioética Global pode actuar realizando imperativos morais de solidariedade e justiça, minimizando as diferenças entre pobres e ricos, entre regiões do Norte e do Sul Global, ou seja, contribuindo para um desenvolvimento humano sustentável.

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1.     Caamaño López JM. «Dignidad y derechos humanos», em: R. Rubio de Urquía JJ, Pérez-Soba (ed.). La doctrina social de la Iglesia. Estudios a la luz de la encíclica Caritas in veritate. Madrid: Editorial BAC; 2014.

2.     Ramellini P. Ecologia umana: Studia Bioethica. 2015; 8 (2).

3.     Stalnaker A. Judging others: History, ethics, and the purposes of comparison. Journal of Religious Ethics. 2008; 36(3): 425-444.

4.     Ten Have H, Gordijn B (Eds.). Handbook of global Bioethics. Dordrecht: Springer; 2014.

5.     Tham J, García Gómez AMG (Eds.). Religious perspectives on human vulnerability in bioethics. Dordrecht: Springer; 2014.

 

RACSaúde – Angolan Journal of Health Sciences. www.racsaude.com